Doce!
Esta é a melhor palavra para descrever a ilha de São Tomé,
lá no meio do Atlântico, com uma pontinha sobre a linha do Equador. Doce! Assim
mesmo com um ponto de exclamação – logo eu que não sou nada de exclamações, nem
na vida nem no género literário porque dá a ideia que se fala aos berros ou que
nos espantamos com o nosso próprio pensamento -, porque S.Tomé é um pasmo de
boa onda.
Doce na palavra das crianças, aos milhares desde a Cidade,
às Roças ou às praias que, com um sorriso infinito e cheio de bondade, desejam
apenas um miminho: pode ser um rebuçado, pode ser um beijinho ou um five. São crianças ternurentas que se
tornam adultos dóceis, educados, que pedem licença antes de falar, que abrem as
portas de casa e dos corações.
“ - Senhor senhor! Da próxima vez que vier cá pode-me trazer
uma texas, para poder jogar mais
rápido? Para jogar como no monopólio…”
Trago sim, respondi eu sem saber a quê; e de repente abre um
saco de plástico que se escondia debaixo do sovaco, onde guardava o seu bem mais
precioso: umas velhas chuteiras.
“ – Não precisam de ser tão boas como estas”, respondeu-me o
rapaz, à saída da Roça Diogo Vaz, quando decidi ir para norte e percorrer toda
a Nacional 1, até não poder mais, até depois de Ponta Furada.
A Estrada Nacional 1 sai da Cidade de São Tomé e segue em
direcção a norte e, depois, acompanha a ilha entre o verde da floresta e o azul
do mar, para oeste. Vilas e aldeias estão semeadas entre crateras no asfalto,
povoadas por crianças e adultos, motos, monovolumes amarelos com cordas a
segurar a tampa da mala à base da escova do limpa-para-brisas, porcos e leitões,
galinhas e pintainhos, igrejas de todo o tipo e credo. É assim na Nacional 1 e,
salvo os buracos que felizmente só aqui se encontram, em todas as outras
estradas, asfaltadas ou em pedra e terra batida.
A particularidade desta estrada, depois de ser passar em
locais tão belos como as praias de Tamarindos, Conchas, a Lagoa Azul; depois de
se parar em Neves para saborear uma santola e uma Rosema fresquinha, num
primeiro andar de uma velha casa com mesas numa varanda que ladeia uma escada e
onde se escuta toda a vizinhança, lá em baixo; depois de Lemba, deixa-se o mar
e entra-se na floresta.
O sol desaparece por baixo da folhagem e onde antes havia
asfalto existe erva um pouco menor que a que ocupa todo o resto do espaço. um abismo também
é doce.
Os
barulhos são outros, a cor, a humidade, um constante gotejar que parece ser
chuva mas é a condensação. Em Ponta Furada, um homem com uma camisola do
Benfica – são aos milhares aqui! – espantou-se por ver um carro, tão longe de
tudo. Quilómetros mais à frente, não conseguia prosseguir mais e dei a volta. Esta
sensação de caminhar para
Doce foi a conversa do Luís Fernando – os nomes são,
maioritariamente, portugueses, vincando bem a origem cristã das nossas
descobertas e do movimento colonizador de São Tomé, as “Ilhas do Fim-do-Mundo”
-, um morador da Roça de Monte Café que fez questão de explicar todo o processo
de transformação do café, desde a colheita à torragem. Conheci a escola, a
sanzala, o outrora hospital da Roça. Hoje é quase tudo habitação e escola
porque as crianças são imensas e todas vão à escola; há palavras de ordem
escritas nas fachadas como a educação ser a melhor arma para enfrentar o mundo.
Monte Café fica na Nacional 3, que sai da Cidade e vai para
o centro do território. A estrada é soberba, de asfalto novo, liso, uma rampa
onde o meu amigo Pedro Salvador brilharia e onde o meu pequeno Suzuki Jimny começou
a perder a gaguez e a mostrar-se um grande meio de transporte.
Da Roça do Monte Café há uma picada para por Novo Destino e
Pentecostes que leva à nascente do Rio do Ouro e à Roça Agostinho Neto. Mas ao
invés disso, continuei até Sodade, no caminho para S.Nicolau.
Saudade é a Roça do pai do Almada Negreiros e é com esforço
que os habitantes tentam reunir um acervo do artista para aumentar a
importância da Roça. Será que a Roça foi importante para o trabalho de Almada?!
Certamente foi. E a Fundação Gulbenkian, que tantas vezes faz orgulhar Portugal
e a lusofonia tomando o papel do Estado, poderia, com pouco dinheiro, melhorar
o espaço: uma biblioteca, edições fac-símile,
algo que efectivamente conecte aquele espaço com Lisboa.
Almada é doce como doce foi a conversa que tive com uma
jovem à saída da Roça da Saudade: todos os mapas que tinha me indicavam que era
possível seguir dali por um caminho até Milagrosa, sem ter que passar pelo Monte
Café; mas passados 20 metros, logo a seguir à primeira curva, não vejo a
estrada, no meio da multidão de pessoas e animais. Perguntei, então, à jovem:
“- A estrada é por ali?”
“- É, sempre em frente.”
Segui, devagar para não atropelar ninguém, nem uns 50
metros. Eu não vi a estrada mas a estrada que a jovem me disse estava, efectivamente,
ali: debaixo da casa de alguém que deve ter pensado que era melhor construir a moradia
em cima do paralelo do que num ermo qualquer. Risota, marcha-atrás e muita
paciência para não atropelar ninguém e observar as mentes a pensarem “branco é
maluco!”.
De Trindade até Milagrosa a estrada volta a ser feita de crateras
com algum asfalto. Mas de Milagrosa para Bombaim, “apenas 9 Km”, de pedras e
troncos de arvores caídas, numa paisagem de enorme beleza com árvores seculares
que tapam grandes precipícios, que o Jimny, com toda a calma, vai ultrapassando.
Ao fim de 40 minutos uma cascata e, mais abaixo, um hotel abandonado e umas
cabanas.
Doce e palavras de consolo foi o que dei; mas as pessoas estavam à
espera de arroz…
O regresso de Bombaim foi feito por outro caminho que cruza os
grandes montes verdes, por Java e Abade, em direcção a Santo António e ao seu
famoso Eco Lodge. Descendo em direcção ao mar, a Nacional 2.
Não sei se é do nome mas a estrada Nacional 2 é A estrada! Liga
a Cidade ao sul da Ilha, até Porto Alegre. Cruzei-a vários dias mas ao Sábado é
dia das mulheres lavarem a roupa nos diversos rios que a cruzam, e é uma
alegria e um colorido inimagináveis no Portugal dos dias de hoje.
Até ao palmeiral o asfalto é perfeito e o transito,
sobretudo a seguir a Angolares, é quase inexistente. Tem rectas, curvas de alta,
media e baixa velocidade, onde o pequeno 4x4 passou dos 130 km/h. Depois do
palmeiral a estrada volta a estar esburacada; mas a paisagem pintada de grandes
folhas de alma e com o Cão Grande a tomar conta do espaço, faz valer a pena os
solavancos. E lá no fundo da estrada, estão as praias paradisíacas; capa de
revista!
O sobe e desce parece um carrocel alpino, com a vantagem de viajar
com uma temperatura de 30 graus, entre a serra linda e verdejante, de onde
brotam arvores e frutas exóticas, e o mar com praias de areia preta ou branca,
autênticos paraísos naturais. Com o calor, nada como parar e dar um mergulho no
Atlântico retemperador.
Foi isso que fiz na baía da praia das Sete Ondas; são mesmo
sete, como nos ensinam, e que movimentam de tempos a tempos o mar tranquilo. A areia
é negra e a envolvente verde escura da floresta.
Mais à frente é a Praia do Micondo – termo muito ligado aos
açorianos – com a Roça que, de lá do alto, serve de mirante de tempos idos.
Aqui, um grupo de crianças, nus, mergulhavam efusivamente no mar e rebolavam na
areia, parecendo croquetes. Não sabiam o que era croquetes, ficaram pastel da terra.
“ – O que querem ser quando forem grandes?”
“ - Quero ser professor!”
“ – Como pensam ser a nossa vida, de onde vimos?”
“- De Portugal. Terra digelo, lá onde faz fresco.”
“ – Estudam”.
“ – São brancos!”.
E voltavam a mergulhar. Doce!
Por falar em mergulhos - a serra verde que beija o mar azul continua
a sua fauna e flora, mar adentro -, mergulhei na Lagoa Azul, num naufrágio junto
ao aeroporto e lá no sul, no Ilhéu das Rolas, na Linha do Equador.
Um aquário com visibilidade de 30 metros, com água a 22
graus – os meus guias de mergulho diziam que estava fria - se eles se
apanhassem na Galiza deveriam parecer Jesus Cristo a caminhar sobre as águas!! –
peixes de todas as cores dão mais vida ao mar. Abracei um cardume e, curiosos,
um grupo de Bonitos veio sondar. Muitas moreias, cobras de água e uma
larva-de-fogo.
No Ilhéu das Rolas, mais sorte teve quem ficou no barco: um
grupo de 7 golfinhos passou por cima; mas lá do fundo, não consegui ver os
simpáticos mamíferos aquáticos. Ficou o sorriso da estória, que vale tanto ou
mais que a experiência.
Aqui no sul dormi numa praia de Porto Alegre, num Eco Lodge.
Não havia electricidade e apenas corria um fiozinho de água para o banho; mas
estar num local deserto, com quilómetros de areia e mar, sabendo que é ali que
milhares de tartarugas, todos os anos, caminham para a água e dão início a um
novo ciclo, faz valer a pena. Tudo vale a pena, num universo que é justo e perfeito
e onde o equilíbrio e a natureza são palavra de ordem. Vamos preservá-lo.
De manhã, um pequeno barquinho, devagar como uma chalana, levou-me ao Ilhéu. É obrigatório
ir ao monumento erigido a Gago Coutinho e
Sacadura Cabral e que está na Linha
do Equador. Remanescências de um Império que tem por base a língua e o conhecimento
e, segundo algumas vozes de gente das roças, de gente de trabalho, um Império que
poderia manter a sua organização. Opiniões!
Foi aqui nas Rolas que comi, porventura, uma das melhores
refeições da vida, preparada pelo Toi: frugal, um peixe assado no forno, como
molho de centros e óleo de palma, acompanhado de fruta-pão e banana. Mas o local
e a vista, em plena areia, à sombra do coqueiro e com os pés a poucos metros do
azul turquesa do mar quente. Leve leve.
Doce é a gastronomia São Tomense; não poderia terminar um
texto à volta da palavra doce, sem falar do bem que se come na ilha.
Desde os sofisticados Roça de São João, em Angolares, ao
Omali e ao Pestana Resort na Cidade, passando pela Casa da D. Tete, Pirata,
Papa Figos, Santola e em todas as praias, encontrando um pescador, é possível
disfrutar-se de uma boa e saudável refeição.
Ali come-se o que a terra e o mar dão. Carne, apesar de se
verem imensos porcos, cabras e galinhas, é para dia de festa. Por isso o peixe
é o rei, com a fruta e alguns tubérculos, molho de coentros, malaguetas,
mandioca. A acompanhar, nada melhor que Rosema, digo eu.
São Tomé é um país doce, uma dádiva da natureza. De gente
humilde, de pessoas que saíram de Portugal e da África continental – muitos, a maior
parte, de África – para construírem uma nova sociedade, levando consigo as suas
crenças e tradições, os seus pequenos gestos e que foram sendo misturados e
cristalizados. São Tomé é doce! Vou voltar!